sexta-feira, 5 de abril de 2013

Herberto Helder por ele mesmo

Herberto Helder – “A manhã começa a bater no meu poema”, dito pelo próprio
A manhã começa a bater no meu poema.
As manhãs, os martelos velozes, as grandes flores
líricas.
Muita coisa começa a bater contra os muros do meu poema.
Escuto um pouco a medo o ruído das gárgulas
o rodopío das rosáceas do meu
poema batido pela revelação das coisas.
Os finos ramos da cabeça cantam mexidos
pelo sangue.
Talvez eu enlouqueça à beira desta treva
rapidamente transfigurada.
Batem nas portas das palavras,
sobem as escadas desta intimidade.
É como casa, é como os pés e as mãos das pessoas invasoras e quentes.
Estou deitado no meu poema. Estou universalmente só,
deitado de costas, com o nariz que aspira,
a boca que emudece,
o sexo negro no seu quieto pensamento.
Batem, sobem, abrem, fecham,
gritam à volta da minha carne que é a complicada carne
do poema.
Uma inspiração fende lírios na minha testa,
fende-os ao meio
como os raios fendem as direitas taças de pedra.
Eu sorrio e levo pela mão essa criança poderosa,
Uma visita do sangue cheio de luzes interiores.
Acompanho, como tocando uma espécie de paisagem
levitante.
as palavras pessoas caudas luminosas ascéticas aldeias.
É a madrugada e a noite que rolam sobre os telhados
do poema. É Deus que rola e a morte
e a violenta vida. E o meu coração é um castiçal
à beira
do povo que até mim separa os espinhos das formas
e traz a sua pureza aguda e legítima.
- Trazem liras nas mãos, trazem nas mãos brutais
pequenos cravos de ouro ou peixes delicados
de música fria.
- Eu enlouqueço com a doçura dos meses vagarosos.
O poema dói-me, faz-me.
O povo traz coisas para a sua casa
do meu poema,
Eu acordo e grito, bato com os martelos
dos dias da minha morte
a matéria secreta de que é feito o poema.
- A manhã começa a colocar o poema na parte
mais límpida da vida. E o povo canta-o
enquanto crescem os campos levantados
ao cume das seivas.
A manhã começa a dispersar o poema na luz incontida
do mundo.
Herberto Helder, A Colher na Boca (1961), Poesia Toda, Lisboa, Assírio&Alvim, 1996, pp 39-40.

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