"Aconteceu-me uma vez, numa encruzilhada, no meio do vaivém da multidão.
Parei e pestanejei: não percebia nada. Nada, nada mesmo: não percebia as razões das coisas, dos homens, era tudo sem sentido, absurdo. E pus-me a rir.
O estranho então para mim era que nunca tivesse dado por isso antes. E tivesse até esse momento aceitado tudo: semáforos, veículos, cartazes, fardas, monumentos, aquelas coisas todas afastadas do sentido do mundo, como se houvesse uma necessidade, uma consequência que as ligasse umas às outras.
Então o riso morreu-me na garganta, e corei de vergonha. Gesticulei, para chamar a atenção das pessoas que passavam e -- Parem um momento! -- gritei, -- há qualquer coisa mal! Está tudo errado! Só fazemos coisas absurdas! Este não pode ser o caminho certo. Aonde vamos parar assim?[...]"
"O Lampejo", in A Memória do Mundo. Italo Calvino
"PINTURA NA AREIA
Para curar-me, o feiticeiro
pintou tua imagem
no deserto:
areia de oiro -- teus olhos,
areia vermelha -- a tua boca,
areia azul para os cabelos,
e branca, branca areia, para as minhas lágrimas.
Pintou durante o dia, e tu
crescias como uma deusa
sobre a imensa tela amarela.
E pela tarde o vento dispersou
tua sombra colorida.
E, como sempre, na areia
nada ficou senão o símbolo das minhas lágrimas: areia prateada."
"Poenas dos Peles-Vermelhas" in Poesia Toda. Herberto Helder
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