Mário Botas
Ao seu coitado do Campos,
Vi-te. Vi-me. Meu abominável
porém justo, amigo Álvaro de Campos. Estavas com os outros. O Caeiro, o Reis,
até o Soares e o Search, que devia estar de visita. Estavam todos ali na
Brazileira, a certo ponto pareceu-me ver o Mário, mas esse só o apanharia mais tarde.
Ali vi-te, tal como te vira da primeira vez. Já não me lembrava de como eras
alto, não assim tanto, mas mais do que eu. Já não me lembrava do teu casaco
exageradamente cintado e do teu monóculo. De ti, ficaram só palavras. Vilegiatura. Foste o meu maior orgulho, e
sobrepuseste-te a mim, e dedicaram-te livros.
Já divago.
Vi-vos na Brazileira. Quem diria?
Hoje têm lá uma estátua do que supostamente serei eu. Não deixa de ser uma boa
tentativa. Que memórias. Estava lá um grupo de juventude, que referia o
Negreiros e o Santa-Rita, pelos vistos o Pintor pegou e é o que lhe chamam
hoje, mas o diabo mandou queimar tudo. De certa maneira percebo, não achava o
que tinha feito perfeito. E aquela mentira que contou ao Sá-Carneiro, de que
era na verdade filho da ama que o criou? E o outro que ainda foi acreditar. O
meu velho Sá-Carneiro.
Segui o grupito que me seguia os
passos. Foi como se para me encontrar, tivesse de me ir buscar às calçadas
daquela aldeia. Foram para o miradouro de Stª Catarina, ao qual também chamaram
Adamastor, e leram o Mostrengo. Começaram a voltar para trás, e quase adivinhei
para onde se dirigiam. Nesse momento vi dois jovens que se adiantavam do grupo
e que me citavam. A luz raiada raiou,
e era o que me passava pela cabeça - exatamente a mesma luz que imaginava estar
quando nasci. Sim, chegamos à minha pequena aldeia, o Largo de S. Carlos –
agora até lá está uma placa a dizer que foi onde nasci, mais uma vez, quem
diria? Falaram do cadáver da minha
infância ida e leram o teu “Aniversário”, que tanto me diz. A verdade, é
que no tempo em festejavam o dia dos meus
anos, eu era feliz e ninguém estava morto. E ainda a da Hora do Diabo,
quando digo que Nunca tive infância, nem
adolescência, nem portanto idade viril a que chegasse. Sou o negativo absoluto,
a encarnação do nada. O que se deseja e se não pode obter, o que se sonha
porque não pode existir ― nisso está meu reino nulo e aí está assente o trono
que me não foi dado. Aí, comecei a apanhar os meus passos, que há tantos
anos perdera. Referiram ainda que eu tinha dito que dali se tinha a melhor luz
de Lisboa e “Os sinos da minha aldeia”, na Basílica dos Mártires, onde me
batizaram.
Dali seguiram para um sítio
inesperado, inesperado pelo facto de subirem e descerem constantemente – O
Casino Lisbonense, no Largo Rafael Bordalo Pinheiro, onde andou o nosso querido
Eça, que alguém o tenha. E fomos alegremente para o Largo do Carmo, onde veio a
Mensagem. Recordo os anos em que ali vivi, e depois cá de cima, do que
vim a saber que ali se passara, que ainda me deram que rir por bom bocado. Os
miúdos estavam tão desesperados por encontrar uma ligação entre a minha obra,
que se limitava grandemente a Mensagem, que me lembrei dum bocado do
“Liberdade” que escrevi a um mês de morrer: Quanto
é melhor, quando há bruma,/ Esperar por D. Sebastião,/ Quer venha ou não! Independentemente
disso, eu sabia que o tiraninho
acabaria por cair. Como disse Este senhor Salazar /É feito de sal e azar./Se
um dia chove,/A água dissolve/O sal,/E sob o céu/Fica só o azar, é natural./Oh,
c´os diabos!/Parece que já choveu...
Passando os passos, encontrei-me
no Leão D’Ouro. Sim, passei por ali, e estava lá pintado, mas não queria
esperar para chegar ao Rossio, dali só poderia vir o Sá-Carneiro! Mas não me
consegui distanciar, como se quando o fizesse, me desvanecesse, o inverso do
que tu me fizeste. Tu exigiste-me vida, e assim eu dei-ta. E ali estava ele, à
porta. As saudades! Ele nunca saiu de Paris! Eu de cá, nunca consegui sair… Mas
ele, o meu amadrastado da vida, esperava-me ali, diretamente de Paris, não
poderia vir para mais lado nenhum, porque o raio já o partira, como tantas
vezes o esperara eu a ele.
Continuei, sozinho, como só
poderia ser, atrás do grupito, e vi-me no café que hoje já não o é, à espera
que Ophelia se pusesse à janela, para ver só um pouco dela.
Já no Rossio, senti-me num
carrossel, com tantas imagens e memorias, e tanta bica e tanto cigarro. E
esbarrei contra o Crosse, o Thomas! De todos, porque é que haveria de me
aparecer mesmo este aqui? Mas tive gosto em vê-lo à mesma, porque não? E fez
questão de me acompanhar até à Praça da Figueira. Ali, o castelo espelhava o
passado, e a Mensagem era sobre o futuro. E percebi o que fazia ali o
Crosse, vinha-me a contar, que começara a trabalhar em alguns temas: A
origem dos descobrimentos; O mito do rei D. Sebastião; Reis que
voltarão.
E Ali, ele ficou para fazer o que
quer que faça na sua existência póstuma. E ali seguimos para um deleite meu: A
Licorista. E tu sabes o que quero dizer! Sei que gostaste tanto como eu
daqueles serões ‘absíntios’. E seguimos para a trama da baixa onde tanto tempo
queimei a trabalhar. Escritórios e escritórios! Que aborrecimento! E depois
voltamos aos meus – o meu velho Mário, quando passamos pela casa onde nascera.
Ali, só o Fim, do Mário, só digno de palmas. Afinal de tudo, morrem jovens os que os deuses amam, e
assim foi. Os deuses deviam mesmo amar este. E fiquei eu, E o que sou é um sonho que está triste.
Marchamos então, com aquele poeta
no coração, para o Cais das Colunas, onde se lê o “Mar Português”, mas podia
muito bem ler a Ode Marítima. Umas meninas distribuem barquitos de papel, que
todos vão soltar ao Tejo - Eu soltei uma Nau.
Agora, subimos para o Martinho.
Sinto-me homenageado. Ali tenho um lugar cativo, ao lado de outros, alguns, que
não tive o privilégio de conhecer. Mas vi-nos, todos, num só, numa memória
comum e concreta, em que poderia viver. Assim saímos, e quase corremos para a
Casa dos Bicos, a presente fundação Saramago, um jovem escritor cujo salão
partilho no Martinho da Arcada. Este, também já foi.
E assim acabou. Cada um tomaria
agora o seu ritmo. Já não sabia para onde ir. Onde tinha estado? Percorri pelos
pés de uns que se afastavam em direção ao paço. A chegar, parei, e uma festa
rebombava no Martinho. Era naquela memória comum que pertencia, que sempre estivera.
Ao fundo, a Nau ainda flutuava.
Sempre
seu,
Fernando Pessoa
Tomás Neves
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