Relatório de um inquisidor
deslumbrado
A minha mãe costumava dizer-me muitas vezes que havia
escolhido este meu nome para mim, pois acreditava na força e liderança que ele
transmitia. ‘’Ousadia, força de vontade, líder por natureza, que atrai as
outras pessoas com seu entusiasmo’’. Dizia-me também que boa pessoa era aquela
com o mesmo nome que eu. António. Mas
não. Ele não. Ousado sim, mas certamente não boa pessoa. Com os seus sermões
que diz de natureza pluralista e com conversas de salgador, atrai os outros e
envolve-os em mentiras que não mais podemos tolerar. O
copo há muito que tem sido enchido, pouco a pouco, e agora, transbordou. A
Inquisição mandou-me hoje aqui acabar com esta brincadeira há muito suportada e
há muito tolerada. Não há nome que o salve ou sermão que me impeça de cortar
pela raiz tamanha ousadia que tem vindo a mostrar há tanto tempo.
Ao
percorrer estas belas ruas lisboetas, preparo-me para o que se irá suceder.
Penso no que poderei escrever sobre aquele herege. Mas agora, com um pé dentro
e outro fora desta Igreja barroca de São Roque apercebo-me que nenhuma
preparação poderia antever tal situação. Por momentos ainda tentei resistir
contra tal deslumbramento e tentei desviar o olhar de tamanha beleza. Não era
disso que se tratava. Não podia desconcentrar-me. Porém era tão bela, tão
exuberante! Sabia que dentro de momentos toda a viagem até àquele luxuoso
edifício deixaria de fazer sentido. Nem António, nem sermão, nem mesmo o meu
trabalho como inquisidor faziam sentido naquele momento. Aquela Igreja que
quase nos arrancava os pulmões do peito e nos deixava a sufocar ali no
meio, era o centro dos meus pensamentos. Toda a teatralidade das
deslumbrantes ornamentações, revestidas de cima a baixo com o luxo que apenas
uma talha dourada pode conceder. Se D. João V pretendia valorizar a sua imagem
ao mandar construir tão imponente e poderosa igreja, bem, a meu ver, foi muito
bem conseguido.
Como
católico que sou e cuja vida dedico inteiramente à prática e manifestação das
minhas crenças, nunca nenhuma outra igreja me havia tocado e deslumbrado de
modo tão fogoso e sufocante. É como se todos os meus sentidos tivessem sido
acionados, todas as minhas emoções, desde que passei por aquela porta. Esta aura religiosa envolve-me como nenhuma outra é capaz de o fazer.
Toda a
Igreja parece movimentar-se. Parece que dança à minha volta e me canta ao
ouvido. Ao olhar para o fundo, não o vejo. Todos estes jogos de claro-escuro
tornam-na infinita, irreal. O teto, maravilhosa e rigorosamente pintado e que
parece prolongar-se além do infinito, fez deslizar uma lágrima pelo meu rosto.
Todas as oito capelas à minha volta, tão dramáticas e douradas provocam a mesma
emoção em mim. Encontro-me agora no meio da igreja a chorar como um bebé
acabado de nascer. Acho que era esse o objetivo. Todo o edifício foi
construído para apelar aos sentidos como nenhum outro. Foi construído como um
livro de histórias é escrito, para contar a nossa história, a história da nossa
Igreja.
Joana
Tomás, nº 16, 11º D
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